Entre o que sinto e o que escrevo
Vou criar o que me aconteceu – disse Clarice.
Talvez seja essa a essência de escrever:
transformar o vivido em linguagem,
o confuso em caminho,
o que nos atravessa em algo que também possa atravessar o outro.
Escrever é, antes de tudo, um gesto de invenção de si.
Um modo silencioso de exorcizar o que pulsa demais.
Organizar o caos interno com palavras que, aos poucos,
vão desenhando sentido onde antes só havia sensação.
Escrevemos para nos entender –
como quem abre gavetas antigas,
espalha o conteúdo no chão e começa a dobrar,
nomear, reconhecer.
Mas não é só da própria história que nascem os textos.
Às vezes, é ouvindo o outro –
num café, num banco de praça, numa conversa distraída –
que sentimos a fagulha.
Uma frase, um gesto, uma dor que não é nossa,
mas que encontra eco no que carregamos.
Escrever também é emprestar o ouvido ao mundo
e depois devolver, em palavras, algo que seja abrigo.
E há uma espécie de milagre discreto
quando alguém lê o que escrevemos
e diz: me vi aqui.
É nesse momento que o íntimo vira universal,
e o que era só desabafo vira encontro.
A palavra escrita se estende como mão.
Toca. Acolhe. Salva.
No fim, talvez escrevamos para isso:
para criar o que nos aconteceu
e, ao fazer isso,
deixar de carregar sozinhos aquilo que doeu.
Escrever como quem cura.
Como quem partilha.
Como quem se encontra.